Essa frase marcou sua vida para sempre. A paralisia do poder e o caos da praça são seus pesadelos desde então.
Como ele disse em 2000, ano em que foi eleito presidente da Rússia, "nessas circunstâncias, apenas uma coisa funciona: você tem que atacar primeiro e golpear com tanta força que seu oponente não poderá mais se levantar".
"Teríamos evitado muitos problemas - acrescentou - se não tivéssemos deixado o Leste Europeu tão apressadamente".
O mais macroscópico, segundo Putin, foi o sucessivo colapso da União Soviética, quando a independência das repúblicas, especialmente as eslavas, "tornaram os russos o maior grupo étnico do mundo a ser dividido por fronteiras estaduais".
Talvez seja útil voltar a esse episódio longínquo da nossa viagem na mente do czar, para tentar compreender as razões profundas que o levaram a ordenar a maior operação militar na Europa desde o fim da Segunda Guerra Mundial. E, sobretudo, para entender quanto equilíbrio residual e razoabilidade ainda residem nele.
Se este é o pano de fundo, é claro que Putin decidiu, trinta anos depois, agir em nome da unidade do povo russo.
Menos lineares são os processos que convenceram o líder do Kremlin a desencadear o apocalipse e lançar uma guerra destrutiva, que provavelmente o fará prevalecer, mas corre o risco de se transformar em uma vitória de Pirro, assombrando a Rússia com consequências políticas, econômicas e estratégicas muito sérias.
Seja qual for o resultado da partida ucraniana, é evidente que nos próximos anos um novo intermarium, uma linha divisória de mar a mar, descerá do Báltico ao Mar Negro, separando novamente o continente entre dois blocos inimigos.
Uma realidade paralela na mente de Putin
Segundo o escritor russo Viktor Erofeev, "uma realidade paralela se formou claramente na mente de Vladimir Putin, incompreensível para a Ucrânia, América e Europa".
É um mundo em que uma gangue de neonazistas governa em Kiev, armando-se com contribuições americanas e ameaçando militarmente a Rússia. "Nesta visão, a Ucrânia deve ser desmilitarizada, seu exército liquidado, o país um pouco castrado." Erofeev argumenta que essa realidade alternativa vem se formando em Putin no espaço de vinte anos, aqueles em que ele foi presidente, e que se baseia em quatro elementos básicos: “Infância pobre, juventude como menino de rua, a KGB e o império soviético” .
Nikolai Swanidse, ex-membro do Conselho de Direitos Humanos e velho amigo de Putin, antes de cair em desgraça por sua defesa do Memorial, também confirma o início da deriva vinte anos atrás: "Como podem influenciar positivamente vinte anos de poder descontrolado e czarista?”. Segundo Swanidse, "a linguagem é usada por Putin para esconder seus pensamentos; interessante não é o que ele diz, mas o que ele faz".
Mas foi a experiência da pandemia, fechado durante dois anos numa fortaleza cada vez mais separada do mundo, que acentuou os seus aspectos messiânicos e a convicção de ter de cumprir uma missão.
Antes, porém, há um passo importante, de acordo com a cientista política Tatjana Stanowaja: "O ponto de virada é no início de 2020, quando Putin modifica a Constituição e efetivamente se torna presidente vitalício: ele pode distorcer as regras à vontade e isso muda sua psicologia e a maneira como se relaciona com seus adversários internos e externos, o que faz com que se sinta onipotente”.
Putin identifica o destino da Rússia com o seu destino pessoal.
A história se tornou uma obsessão para ele.
Não deverá mais acontecer que um presidente americano, como foi o caso de Barack Obama, se permita definir a Rússia como "uma potência regional".
Abrir a crise na Ucrânia, diz o historiador Reinhard Krumm, “é a catarse geopolítica para rearranjar as relações da Rússia com o mundo”, custe o que custar. Putin agora pensa como um monarca absoluto e identifica o destino da Rússia com o de sua pessoa. E adota uma narrativa cada vez mais irracional: “Ele considera a Rússia como uma entidade metafísica, um ser eterno que por razões históricas é superior a uma entidade artificial construída por Lenin, que é a Ucrânia”, explica Kurt Kister, ex-diretor do Süddeutsche Zeitung.
por Paulo Valentino
Sonhamos em Universos Paralelos – Cap. 19 - Prisões Invisíveis: Liberte-se