Por Samuelita Santana
Enquanto os países mundo afora se empenham em traçar planos estratégicos de investimentos, de reformas para restaurar suas economias e sedimentar novos caminhos de proteção e de desenvolvimento, mantendo o vetor inteligentemente apontado para a fase pós-pandemia e a visão aguçada em um novo mundo, o Brasil continua a patinar e a se perder em discussões bizantinas, infrutíferas polarizações pseudo-idológicas e em queimar esforços com convenientes projetos políticos, cujo fim não parece outro senão o de demarcar domínios, fortalecer grupos de interesses comuns e legitimar velhas e nefastas práticas para ampliar e perpetuar poder.
Com um saldo assombroso de mais de 570 mil mortos, 20,4 milhões de infectados e um rastro de estragos deixados em todos os setores da economia pela Covid-19, o país amarga as dolorosas consequências da irresponsável gestão da crise sanitária capitaneada pelo governo Jair Bolsonaro. Mas não só isso. Amarga também o absoluto descompasso com os planos e as estratégias de investimentos que o mundo vem adotando para recuperar suas forças econômicas, sair da zona de risco, avançar no desenvolvimento sustentável, modernizar infraestruturas e preparar caminhos para o futuro das novas gerações. Os países da União Europeia, por exemplo, estão debruçados com seus especialistas e autoridades traçando planos de reconstrução e resiliência, com missões voltadas para a inovação, competitividade, sistema produtivo, revolução ecológica, equidade social, educação, saúde, cultura, pesquisa e mobilidade sustentável.
Num esforço coletivo e com o olhar apontado para o futuro, esses países se articulam para arrecadar recursos e desenhar um plano de recuperação maciço, envolvendo, pelo menos até 2026, a ambiciosa soma de 750 bilhões de euros. Dos 27 países membros da UE, 23 já trataram de engavatar seus embates improdutivos para focar e concentrar energias em seus planos nacionais de investimentos e reformas. A Itália e a Espanha por exemplo, dois países atingidos brutalmente pela pandemia, assim como o Brasil, não perderam tempo com discussões improdutivas sobre o sexo dos anjos. Simplesmente arregaçaram as mangas para trabalhar naquilo que realmente importa: o Plano de Recuperação e Resiliência (PNRR) que vai possibilitar novos investimentos e a reanimação de suas economias na fase pós-pandemia.
Recursos conquistados com planejamento mirado
Com seus projetos de investimentos já aprovados pela Comissão da UE, Itália e Espanha vão levar para casa 191,5 e 140 bilhões de euros, respectivamente. Recursos conquistados com planejamento endereçado para a infraestrutura, programas sociais e a iminente transição ecológica e digital. A França, que também já elaborou e apresentou seu plano, garantiu cerca de 100 bilhões de euros para a sua recuperação.
E o Brasil? Falando num bom português viralizado pelo economista Gilberto Nogueira, o empático personagem do reality show BBB e mais conhecido como Gil do Vigor: ” O Brasil tá lascado”.
Enquanto o mundo se prepara para vencer seus males e dores de forma pragmática e estratégica, o Brasil vai mostrando por aqui toda a sua imaturidade administrativa e institucional. Na guerra travada hoje entre os poderes, Executivo, Judiciário e Legislativo, não tem nenhum soldado inocente. Todo mundo que entrou nessa briga é vilão. O desrespeito é mútuo e todos se atacam sob o pretexto de defender a democracia. Tem gente usando o nome da democracia em vão.
As farpas, ameaças e setas atiradas em todas as direções são tão graves quanto a bagunca de prerrogativas constitucionais, onde cada qual se julga com poderes e direito para fazer o que bem quer, interpretar da forma que quiser, inventar cenários teóricos e hermenêuticos que bem entender. Tudo para justificar ou anular decisões judiciais, invadir atribuições alheias, julgar e legislar em causa própria, alterar leis que persigam desafetos ou protejam a si e as suas confrarias, além de ignorar abertamenta liturgias, regras e preceitos carimbados na Constituição Federal. Esse é o quadro.
Numa absoluta inversão de prioridades, pertinências e uma supervalorização de egos, arrogância, prepotência política e judicial, o Brasil vai encenando uma história de puro terror, com discussões inócuas e retrógradas, no lugar de debates importantíssimos para a retomada do crescimento, dos investimentos, da recuperação da economia e das reformas estruturais, tão essenciais para a modernização, projeção de cenários futuros e garantia de resistência nos processos de desenvolvimento do país. O que se vê por aqui? Ao invés de instituições harmoniosamente empenhadas em desenhar um plano de reconstrução para o Brasil pós-Covid, com uma agenda propositiva voltada para a retomada da confiança de parceiros comerciais e futuros investidores, o que se vê é um país inteiro perplexo, uma comunidade internacional boquiaberta, deparando-se dia após dia com a queda de braço e o pavoroso bate-boca entre os excelentíssimos poderes constitucionais.
Tanques, retrocessos e coações
A grande mídia, com interessada eficiência, dá amplo destaque a esses embates contraproducentes e raramente se preocupa em cobrar categoricamente debates com pautas produtivas para o país. Ao contrário, legitima e valoriza de forma irresponsável a relevância de discussões puramente polêmicas, que disvirtuam o foco do que de fato é importante. Vale tudo nessa guerra armada para desestabilizar adversários, mas travestida cinicamente por todos os oponentes em luta pela defesa da democracia. Qual democracia caras pálidas?
Em nome dessa suposta democracia os poderes se engalfinham, se atacam e se ameçam. Legislativo busca impeachmar Executivo, que quer impeachimar Supremo, que acusa o Executivo e bate o martelo com decisões que lhe contrariam e desafiam. Com direito a constrangedor desfile de tanques blindados na Praça dos Três Poderes, xingamentos, mandados de prisões, quebras de sigilos legalmente controversos – sem a tal “observância do devido processo legal” que, aliás, só vale para uma turma e para outra não -, além de censuras prévias, ordem de desmonetização de canais antagônicos e flagrantes ataques à liberdade da expressão e opinião. Atos ditatoriais que ferem a Constituição, indignam o Estado Democrático de Direito, porém justificados por todos como: “em defesa da democracia”.
O espectro do retrocesso que paira sobre o país não ronda apenas em torno da insólita discussão sobre o voto impresso X urnas eletrônicas. Perpassa também por decisões inconcebíveis como as que desmantelaram a mais consistente força de combate à corrupção, a Lava Jato, permitindo o retorno à cena política de personagens investigados e condenados por corrupção, formação de quadrilha e desvio de dinheiro público. O exemplo mais emblemático é o do ex- presidente, ex-condenado, ex-preso e ex-corrupto Luís Inácio da Silva, o Lula, que hoje rodopia livremente pelo país fazendo campanha antecipada à presidência da República. Sem ser incomodado.
Ironicamente, os retrocessos avançam. Tem a volta das coligações partidárias, uma aberração enterrada em 2017 – há tão pouco tempo – e desencavada na última terça-feira, 17, pela Câmara dos Deputados, naturalmente com o intuito de salvar o establishment político nas eleições de 2022. Se aprovada pelo Senado, volta à cena os chamados “partidos de aluguel”, sem representatividade, sem ideologias, sem propostas, prontinhos para barganhar tempo de propaganda eleitoral e tilintar seus cofres com o dinheiro público. São os senhores deputados legislando placidamente por seus interesses, como bem comprova o titânico fundo eleitoral que aprovaram dentro da LDO para 2022: nada menos que R$ 5,7 bilhões, o triplo do valor destinados às campanhas de 2018. Algo imperdoável para uma nação que vive num momento de pandemia, fragilidade jurídica e institucional. Bolsonaro disse que “pode vetar” , mas só um poquinho: vai baixar o valor do fundo de R$ 5 para R$ 4 bilhões. E até vai querer que a população agradeça.
A tal preocupação com o povo brasileiro e com a democracia, entra em rota de suspeição quando se observa também o desenrolar da CPI da Pandemia no Senado, cujo objeto de investigação, que deveria apurar responsabilidades dos governos federal e estaduais no enfrentamento à crise do coronavirus – escopo mais que necessário, pertinente, legal e louvável, diga-se – , enveredou por caminhos tortuosos, adotando posicionamentos claramente parciais, seletivos, principalmente por parte de membros do comando da comissão que, na verdade, nem deveriam estar ali por serem parlamentares investigados, inclusive por corrupção na área da saúde. Um contrassenso que só poderia resultar em abuso de poder e cenas de intimidação, coação, humilhação, julgamento e ordem de prisão a depoentes. Um vexame!
Afinal, qual a importância do povo brasileiro nesse contexto disfuncional? Se as instituições não se complementam, não se respeitam, não se fiscalizam, não limitam atribuições e prerrogativas, não levam em conta os anseios, a segurança e a participação da sociedade civil nas decisões que tomam, como acham que são guardiães do Estado Democrático de Direito, gestores do bom funcionamento da máquina pública, asseguradores dos direitos civis e sociais dos cidadãos, os mesmos que os mantêm nas cadeiras que ocupam? Nem precisa ser especalista para concluir onde a corda desse cabo de guerra vai partir, a persistirem os atos insanos desses protagonistas que encenam o poder. Se nada se renovar e a corda partir, parafraseando o profeta Gil do Vigor, a Democracia tá lascada!